O Marco Civil Da Internet, carta de direitos da Internet brasileira, foi uma conquista única na legislação moderna. Usuários de Internet, acadêmicos, tecnólogos, empresários e representantes do governo contribuíram com a redação em um longo processo de consulta conduzido por meio da mesma tecnologia que pretendiam defender. Seu escopo e princípios foram debatidos publicamente e centenas de edições e sugestões foram consideradas. Sua forma final não foi, de forma alguma, perfeita, mas contém fortes proteções à liberdade de expressão, privacidade, neutralidade de rede e acesso à informação. Assinada em abril de 2014, a lei foi uma vitória história para a colaboração e deveria se tornar uma base sólida para o futuro da Internet no Brasil.
Menos de dois anos se passaram desde então e alguns políticos brasileiros já estão tentando enfraquecer o Marco Civil e a Internet livre que ele apoia.
Um novo projeto de lei, o PL215/2015 - que em sua versão inicial estabeleceria uma “causa de aumento de pena para o crime contra a honra praticado com o emprego de equipamento, aparelho, dispositivo ou outro meio necessário à realização de telecomunicação, ou por aplicação de internet” - deve ser levado em breve à votação no Plenário da Câmara dos Deputados. Desde que foi apresentado pela primeira vez em fevereiro de 2015, o projeto tramitou de forma acelerada e, em sua curta existência, foi capaz de absorver uma série de ideias terríveis que teriam sido motivo de risadas nos fóruns de discussão sobre as primeiras versões do Marco Civil.
Algumas das piores medidas já foram consertadas graças à crescente mobilização pública sobre o PL 215, o "PL Espião", como ficou conhecido nas redes sociais. Em uma de suas versões, o texto concedia o acesso de autoridades governamentais ao conteúdo das comunicaçoes e aos registros de conexão de provedores de Internet e companhias telefônicas sem ordem judicial — contrariando explicitamente a declaração original do Marco Civil que garante aos usuários a “inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial”.
A provisão que garantia o acesso generalizado foi descartada durante a tramitação do PL 215 na Comissão de Constituição e Justiça, mas o texto aprovado ainda contém medidas que podem restringir profundamente o caráter livre e aberto da Internet no Brasil.
Nomes Reais: Verdadeiras Violações à Privacidade e Segurança Online
Se aproveitando de uma fragilidade nas proteções à privacidade do Marco Civil, uma das propostas generaliza a falha por todo o país ao tornar compulsória a extração e coleta de dados pessoais íntimos.
O atual artigo 10 do Marco Civil deixa claro que todos os dados pessoais coletados pelos provedores de acesso e aplicações de Internet só podem ser entregues às autoridades mediante ordem judicial. No entanto, uma exceção foi adicionada incorporando uma medida presente em uma lei anterior sobre lavagem de dinheiro. Segundo o parágrafo 3º do artigo 10, autoridades administrativas podem ter acesso a “dados cadastrais” de qualificação pessoal, filiação e endereço sem necessidade de ordem judicial.
O texto atual do PL 215/2015 altera este parágrafo para expandir radicalmente a lista de itens que podem ser obtidos sem revisão judicial - adicionando endereço de e-mail, número de telefone e CPF – e tornando obrigatória a coleta de tais dados por parte dos provedores, invertendo o espírito de todo o artigo 10. O projeto transforma uma pequena possibilidade das autoridades driblarem os tribunais em uma obrigação universal de coleta e armazenamento de informações pessoais dos usuários. Caso o projeto seja aprovado, todos os sites e aplicativos de celular deverão requisitar tais informações dos usuários e disponibilizá-la às autoridades, caso solicitem.
A medida impõe uma carga impossível e injustificada a todos os websites e desenvolvedores de aplicações brasileiros. Milhões de usuários de Internet inocentes serão obrigados a entregar seus dados pessoais de identificação que, inevitavelmente, serão invadidos nos servidores dos milhares de sites e aplicativos forçados a hospedá-los a seus próprios custos. E, é claro, os dados vazados serão utilizados em crimes de roubo de identidade para a criação de registros falsos por criminosos reais, difamadores ou cidadãos conscientes e preocupados com sua privacidade.
Sabemos que isso irá acontecer porque isso sempre acontece. Três anos após a Coreia do Sul introduzir uma política compulsória de nome real, o vazamento interminável de dados dos cidadãos e a declaração de inconstitucionalidade da requisição do número de identidade para o uso de qualquer site fez com que toda a lei fosse eliminada. A medida também não ajudou a solucionar o problema que buscava resolver. Como observou a Corte Suprema do país na decisão que revogou a lei, o sistema não trouxe benefícios à sociedade e, apesar de sua aplicação, o número de conteúdos ilegais ou maliciosos online não diminuiu.
Um Botão “Deletar a Internet” Para os Ricos e Poderosos
O PL215 também inclui uma emenda ao Marco Civil que permite que um juiz determine a “indisponibilização” de conteúdos considerados difamatórios ou que associem uma pessoa a crime do qual tenham sido absolvida.
Os autores deixaram claro que se trata de uma tentativa de replicar o "direito ao esquecimento" no Brasil, mas a medida vai muito além da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia. Enquanto o Tribunal se concentrou na desindexação de resultados obtidos com termos específicos e em determinados mecanismos de busca, o PL 215 utiliza uma linguagem vaga ao dar aos tribunais uma autorização genérica para a retirada de conteúdos online. O texto não inclui a necessidade de que as decisões levem em consideração o interesse público, revisão crítica ou a preservação de registros históricos precisos. Não há nenhum processo para que uma decisão seja questionada ou que o conteúdo volte a ser publicado, nenhum requisito de que a exclusão seja minimizada e nenhuma garantia de que a indisponibilização errônea ou maliciosa será penalizada.
Como dezenas de advogados e ativistas explicaram aos autores do projeto, ele dá aos interessados em retirar comentários críticos de sites, blogs, arquivos ou conversas poderes ilimitados para editar a Internet de modo que os beneficie.
O Marco Civil tem suas falhas, mas sua versão final inspira respeito dada a transparência e abertura do processo que levou a sua aprovação. Cada setor interessado no futuro da Internet teve a chance de apontar seus problemas e propor sugestões. Ativistas de direitos humanos ajudaram a moldar a proteção às liberdades fundamentais; legisladores e acadêmicos desenvolveram uma linguagem precisa e a comunidade técnica garantiu sua aplicabilidade. Trata-se de uma lei melhor por conta da diversidade de seus autores.
A extensa abrangência do direito ao esquecimento do PL 215, o fardo que a obrigação de registro de nome real impõe aos negócios na Internet e a impossibilidade técnica de efetivamente aplicar qualquer uma das provisões em uma Internet global evidenciam a ausência de contribuições ao projeto em questão. Os políticos, a polícia e os poderosos foram os únicos a serem considerados na redação. O que eles queriam era uma arma legal para silenciar as críticas na Internet e monitorar seus usuários e se os eleitores brasileiros não se manifestarem e disserem aos legisladores para rejeitar o PL 215, eles vão consegui-la.
Se você mora no Brasil, você pode agir contra o PL 215/2015 agora, com nossa campanha de twitter direcionada aos Deputados Federais do Congresso Nacional.